Um tipo de Design Antropology sentipensante?

Depois de revisar alguns documentos sobre o trabalho do sociólogo Orlando Fals Borda na Região Caribe colombiana, me pergunto se não estaria surgindo ali um tipo de Design Anthropology (DA), nos anos de 1970.

Maria Cristina Ibarra
7 min readNov 15, 2020

As primeiras publicações no campo de Design Anthropology (DA) surgem no começo dos anos 2000, principalmente no norte de Europa. Este campo se propõe construir um espaço híbrido a partir de misturas metodológicas de design e antropologia, diferente das abordagens tradicionais que relacionam estas duas áreas. DA e Design Participativo (DP) são dois campos que fundamentaram minha tese de doutorado. Nos últimos meses, com o empenho de construir uma prática do design mais latinoamericana, comecei a estudar o trabalho de Fals Borda, sociólogo colombiano. Coincidentemente, os primeiros trabalhos deste pesquisador com abordagens da Investigação Ação Participativa (IAP) ocorreram na cidade onde nasci, Montería. A partir do que tenho estudado dele e seus colegas recentemente, me pergunto se já não estariam construindo um tipo de DA, na década de 70, naquela cidade colombiana.

Foto de Patricia Iriarte / Fonte: Facebook

Escrevendo meu projeto de mestrado, em 2012, encontrei uma fotografia que me lembrou de alguns questionamentos que surgiram quando fazia a graduação em design. Nela, aparecia uma mulher fritando bananas, no centro de Barranquilla (Colômbia), em uma espécie de fogão, que parecia ter sido feito por ela mesma ou por um ferreiro local. Me perguntei: o que posso aprender com aquela mulher e seu artefato? Com essa pergunta, começou minha pesquisa de mestrado, um mapeamento deste tipo de objetos nas ruas de Belo Horizonte (MG). Naquela época, a prática de criação destes artefatos, por vezes improvisados, por vezes não, a chamei de ‘design por não-designers’.

No doutorado, a pesquisa entrou por outros caminhos. Influenciada fortemente pelo Design Participativo (DP) e Design Anthropology (DA), eu desejava não só registrar o trabalho destas pessoas, mas me unir a elas para tentar criar algo juntos. Que pessoas? Juntos como? Nesse momento, eu tinha um ano morando no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. No trajeto do Design Participativo e Design Anthropology, em 2016, me uni a um coletivo de moradores, interessados em pensar colaborativamente sobre a violência do bairro e encontrar táticas para superá-la. Nesse mesmo caminho, em 2017, fui participar como pesquisadora visitante do CODE — Centro de Pesquisas em Codesign da KADK, da Dinamarca.

Durante e depois do meu trabalho com o coletivo, compreendi melhor o que seria o campo de Design Anthropology, uma relação entre design e antropologia que não busca apenas escrever etnografias sobre a prática dos designers, nem utilizar a etnografia como recurso para os processos de design. Para mim, Design Anthropology, em termos mais simples, propõe que designers virem antropólogxs e antropólogxs se convertam um pouco em designers. Isso significa que o trabalho de campo não seria apenas um momento em que pesquisadores adentram no mundo de determinado grupo de indivíduos, para depois escrever sobre eles. O trabalho de campo seria também intencionalmente intervencionista. Umas das razões pelas quais a antropologia se junta ao design é para intervir em campo, a partir do que está sendo percebido naquele momento. Essa(e) praticante de DA não estaria apenas escrevendo sobre o que aconteceu, sobre o passado, mas afinando sua atenção para o que está ocorrendo naquele momento, de tal maneira que possa responder ao que está percebendo. Isso significa, entre outras coisas, que essa(e) praticante de DA se deixa afetar pelo mundo, para dar uma resposta, para corresponder, como diria o antropólogo britânico, Tim Ingold.

Isso significa que o trabalho de campo não seria apenas um momento em que pesquisadores adentram no mundo de determinado grupo de indivíduos, para depois escrever sobre eles. O trabalho de campo seria também intencionalmente intervencionista.

Uma das críticas de DA é à visão linear do tempo, estruturado em passado, presente e futuro. Essa perspectiva concebe o futuro como o resultado sequencial do passado e do presente. Abordagens de DA propõem outras concepções de tempo com conceitos como ‘emergência’ e a ‘mútua constituição’ dos passados, presentes e futuros (SMITH et al, 2016). Igualmente, para DA, a inovação não surge de centros de especializados como o Vale do Silício. A inovação, e portanto os futuros, surge da vida cotidiana, das disputas entre vizinhos, por exemplo.

Livro Design Anthropology de Wendy Gunn, Ton Otto e Rachel Charlotte Smith

Agora em Recife, depois de passar por Barranquilla, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Copenhague, volto em uma viagem pelos livros à minha cidade de origem. Nasci em Monteria (Córdoba / Colômbia), uma capital com aproximadamente 500 mil habitantes, que faz parte do que se conhece na Colômbia como Região Caribe. Em 1986, Orlando Fals Borda doou ao Banco de la República desta cidade os materiais utilizados em suas pesquisas no Caribe Colombiano. Este acervo só pode ser encontrado na cidade de Montería. Me mostrando que o tempo não é algo linear, a pesquisa de Fals Borda me devolve à minha terra, provocando perguntas como: se estaria surgindo um Design Anthropology naquela região colombiana, nos anos de 1970.

O trabalho de Fals Borda é muito particular. Ele estava propondo uma outra forma de conectar a pesquisa acadêmica com grupos de base comunitária. Em um trabalho coletivo, o desenhista monteriano Ulianov Chalarka, nutrido pelas ideias de Fals Borda e com a colaboração de organizações camponesas, criou uma série de quadrinhos mostrando as lutas pela terra de líderes camponeses em Córdoba e Sucre, como Juana Julia Guzmán (ver imagem abaixo). A antropóloga estadunidense Joanne Rappaport explica que esses quadrinhos foram usados como uma ferramenta pedagógica para instigar nos camponeses a necessidade de se organizar, devido à modernização agrária. Esta modernização os forçou a abandonar as terras para trabalhar como diaristas ou se mudar para cidades maiores.

Quadrinhos de Ulianov Chalarka / Diana Carmona © Banco de la República / Fonte: t.ly/0aB3

Os quadrinhos de Ulianov Charlaka me lembram de conceitos trazidos pelo campo de Design Anthropology, que se propõe a desistir das divisões do tempo linear, como foi mencionado anteriormente. Criando uma coincidência interessante, os quadrinhos de Charlaka, dos anos de 1970, buscavam conectar o passado daqueles camponeses com o presente para imaginar cenários futuros, a fim de torná-los realidade.

Fals Borda e seus colegas estavam propondo um novo tipo de sociologia que não buscava apenas registrar os processos de lutas de terra naquela região do Caribe. Eles queriam intervir naquelas comunidades, criando pontes entre pesquisadores e as organizações camponesas, através de materiais de fossem acessíveis para essas pessoas. Com uma linguagem coloquial e através de quadrinhos, eles pretendiam que os camponeses se inspirassem naqueles personagens para mudar o presente. Isso trata de misturas metodológicas que surgem da relação entre design e neste caso, a sociologia e suas formas de trabalho de campo. Esta abordagem pode ser vista como um tipo de DA, que já surgia naquele momento.

Isso trata de misturas metodológicas que surgem da relação entre design e neste caso, a sociologia e suas formas de trabalho de campo. Esta abordagem pode ser vista como um tipo de DA, que já surgia naquele momento.

Orlando Fals Borda conversando com um líder camponês [197-] / Fonte: Banco de la República

Joanne Rapaport e Robles (2018) explicam que, naquela época, havia uma efervescência de movimentos intelectuais na América Latina que criticavam a ciência social positivista que provinha do Norte Global. Esta ciência provia modelos que não eram aplicáveis na América Latina ou outras regiões do Sul Global. Entre estes intelectuais se destaca notavelmente o trabalho do pedagogo pernambucano, Paulo Freire, que buscava transformar a consciência política e social da classe trabalhadora, através de um diálogo libertador. No Brasil, sobressai também o trabalho de Augusto Boal, que desenvolveu metodologias teatrais para analisar e transformar a sociedade.

Morando na Dinamarca, tive uma conversa rápida com o professor Pelle Ehn, um dos precursores do Design Participativo (DP) na Escandinávia, área que influenciou a Design Anthropology. Ele me contou que no passado tinha participado de uma palestra de Paulo Freire e que o trabalho dele tinha sido de grande inspiração para o DP. Nos trabalhos de pesquisadores escandinavos de DP, podemos ver também a influência de Augusto Boal.

Aqui estou eu, nascida em Montería e morando em Recife. Sai da terra de onde começaram os primeiros trabalhos de Fals Borda com a Investigação Ação Participativa e vim morar na cidade onde Paulo Freire nasceu e trabalhou por muitos anos. Além disso, depois de ter passado por várias cidades, descobri que na região em que nasci havia acontecido uma série de movimentos que criaram laços entre cientistas sociais, desenhistas e organizações camponesas. Talvez, não teria chegado a estas informações e questionamentos, sem haver andado por outros caminhos.

Chamar a experiência de Fals Borda de um tipo de Design Anthropology (DA) cria um paradoxo. Ao chamá-la de DA, estaria lendo com uma lente eurocêntrica movimentos contextualizados e situados na América Latina. Não chamá-la de DA me faria quebrar uma possível relação entre dois campos semelhantes.

Chamar a experiência de Fals Borda de um tipo de Design Anthropology (DA) cria um paradoxo. Ao chamá-la de DA, estaria lendo com uma lente eurocêntrica movimentos contextualizados e situados na América Latina. Não chamá-la de DA me faria quebrar uma possível relação entre dois campos semelhantes. Talvez a melhor saída seja mesmo a segunda opção, utilizar os termos que Orlando Fals Borda e seus colegas utilizaram e como designer latinoamericana, me abrir a esse cosmos em que os quadrinhos se unem a métodos etnográficos e a imaginação de futuros possíveis. No campo de design, talvez aqueles conhecimentos e experiências de Fals Borda possam inspirar práticas que utilizem outros nomes. Um ‘design sentipensante’ é um possível caminho.

Maria Cristina Ibarra é uma designer colombiana radicada no Brasil. Doutora em Design e Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE. Em 2018, fez parte, como pesquisadora visitante, do Codesign Research Center da The Royal Danish Academy of Fine Arts em Copenhague (Dinamarca). Igualmente, é idealizadora e co-produtora do Podcast Sentipensante, programa sobre designs e América Latina, spin-off do podcast Visual+mente. Quem quiser conhecer suas pesquisas encontrará seus artigos acadêmicos aqui.

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Maria Cristina Ibarra

Designer, doctor in design, researcher and university professor at UFPE (BR).